Em recente julgamento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou, por unanimidade, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) no âmbito da arbitragem.
O caso em questão, Recurso Especial nº 1851324/RS, discutia a atuação de um preposto de uma das partes como tradutor no processo arbitral. Embora o CPC exija que o tradutor seja um terceiro imparcial, o árbitro permitiu que um funcionário de uma das empresas atuasse como tradutor, desde que as partes estivessem de acordo e as eventuais divergências fossem resolvidas dentro do procedimento arbitral. A parte adversa contestou, alegando violação de artigos do CPC, mas o STJ concluiu que as normas processuais civis não se aplicam automaticamente à arbitragem, a menos que haja previsão expressa no compromisso arbitral ou no regulamento da câmara arbitral.
Segundo o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, o procedimento arbitral é regido essencialmente pela Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996), que prioriza a autonomia das partes para determinar as regras do processo, logo, o CPC só pode ser utilizado como complemento em casos previamente acordados pelas partes.
A decisão do STJ reforça a flexibilidade intrínseca à arbitragem, afastando o rigor processual do CPC, salvo disposição expressa em contrário. A arbitragem, destacou o ministro relator, se trata de um sistema autônomo com regras próprias, razão pela qual seria incorreto impor às partes normas processuais civis sem o devido consentimento prévio.
Essa decisão é vista como um importante marco no campo da arbitragem, posto que reafirma o fato de que o controle judicial sobre sentenças arbitrais deve se limitar a aspectos formais, conforme previsto no artigo 32 da Lei de Arbitragem. Além disso, a decisão acaba por ter o efeito de coibir a prática chamada "nulidade de algibeira", na qual uma das partes tenta anular uma sentença arbitral desfavorável com base em questões processuais que poderiam ter sido levantadas durante o procedimento, mas que são estrategicamente utilizadas a posteriori.
A decisão do STJ tem sido amplamente elogiada por especialistas em arbitragem, segundo os quais se trata de um julgado que vai além da mera jurisprudência, ao reafirmar a distinção entre os sistemas da arbitragem e do processo judicial tradicional. Enquanto a arbitragem privilegia o consensualismo e a flexibilidade, o CPC se baseia em formalismos mais rígidos. Segundo os estudiosos, a solidificação desse posicionamento pelo STJ fortalece a arbitragem no Brasil como um meio alternativo, ágil e seguro para a resolução de conflitos, dando às partes a liberdade de estruturar o processo de acordo com suas necessidades específicas, o que igualmente reforça o caráter essencial de uma boa elaboração das cláusulas arbitrais e de um planejamento processual claro entre os envolvidos.
Sem embargo desses ponderáveis argumentos, entendemos que se afigura mais razoável e justo o entendimento segundo o qual referido precedente é deveras perigoso, na medida em que, em termos práticos, oferece um cheque em branco para as câmaras arbitrais de todo o país estabelecerem o seu próprio estatuto procedimental, abordando, inclusive, ao seu alvedrio, pontos consideravelmente sensíveis e, por vezes, até mesmo contrários à direitos e garantias consagrados na Constituição Federal, a exemplo da (im)possibilidade de acompanhamento das partes a uma perícia, da (im)possibilidade das partes fazerem perguntas para as testemunhas, da (im)possibilidade de o Tribunal Arbitral aplicar os efeitos da revelia ou preclusão - quer seja ela temporal, lógica ou consumativa – em desfavor da parte contrária, entre outros tantos pormenores que foram pensados e debatidos por anos no Parlamento e posteriormente chancelados pelo Executivo e pelo Judiciário, mas que, certamente, no mundo real (vs ideal), não constarão em uma simples cláusula compromissória ou regulamento interno.
Na esteira dessa complexidade ora concebida pelo STJ, esperamos que a tendência natural seja no sentido de que todas as câmaras de arbitragem incluam em seus próprios regulamentos a previsão de aplicação subsidiária do CPC, sob pena de cada contrato/regulamento precisar se transformar, doravante, em um códex privado hermético, isto é, sem qualquer influência da Lei Adjetiva Civil.
Se é certo que um negócio jurídico processual entabulado entre particulares, no exercício da livre manifestação de vontade, não pode dispor sobre ato regido por norma de ordem pública, pode, em tese, uma determinada câmara arbitral – ou mesmo as próprias partes – regulamentar todo e qualquer aspecto de um procedimento arbitral, sem qualquer amarra, em nome da validade de um “sistema autônomo”?
O que também torna essa decisão preocupante é o fato de o STJ, ao condicionar a aplicação subsidiária do CPC à vontade expressa e prévia das partes, ignorar o fato de que a própria Lei de Arbitragem prevê, em várias passagens, a aplicação do CPC (vide arts. 14; 32, §1º; 33, §3º; 36; 37; etc.), criando, assim, uma situação/norma que extrapola sua função de interpretação do direito.
Esse é o cerne das críticas que se podem dirigir à decisão, mas essas questões ainda estão em debate, eis que o precedente extraído do Recurso Especial nº 1851324/RS ainda não transitou em julgado e está pendente de julgamento dos embargos de declaração.
Elaborado por Marcela Teixeira e André Carvalho
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