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03 | Nov

JOTA publica artigo de Aldem Johnston intitulado Prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa

Não há justificativa válida para que atos de improbidade tenham tratamento único na seara do direito de punir

JOTA publica artigo de Aldem Johnston intitulado Prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa

Ao interpretar o artigo 23 da Lei 8.429/1992, o STJ consolidou o entendimento de que não é possível decretar a ocorrência de prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa, em razão de o referido dispositivo legal somente se referir a prescrição quinquenal para ajuizamento da ação, contados do término do exercício do mandato, cargo em comissão ou função de confiança (v.g. REsp 1.218.050/RO).

O entendimento pretoriano se consolidou no sentido de que diante do silêncio da Lei de Improbidade Administrativa (que seria um “silêncio eloquente”), só há de se cogitar na ocorrência da prescrição do fundo do direito prevista no artigo 23 para tutelar o direito de ação e não numa prescrição que incida no trâmite da persecução punitiva.

Entretanto, com o devido respeito ao STJ, tal entendimento, que é replicado por Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federal, é razoável à luz do tratamento que é conferido ao jus puniendi em outras esferas?

Vamos fazer uso de um caso hipotético para ilustrar quão irrazoável é vedar a aplicação da prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa.

Pois bem, no nosso exemplo, Mévio, um servidor público federal que atua como pregoeiro resolveu, com base em decisão fundamentada em um parecer técnico e em um parecer jurídico, não inabilitar uma determinada empresa numa licitação.

Entendendo que a decisão de Mévio favoreceu indevidamente seu competidor no certame, uma das empresas licitantes fez uma representação ao Ministério Público Federal, apresentou uma denúncia ao Tribunal de Contas da União, prestou uma notitia crimins junto à Polícia Federal e comunicou o fato ao órgão onde Mévio é lotado.

Após a oitiva de Mévio no Inquérito Civil, o Procurador da República entendeu que houve violação ao princípio da moralidade e ajuizou uma ação civil pública.

Na esfera penal, a notitia crimins deu azo a uma denúncia por parte da Procuradoria da República imputando a Mévio a prática do crime de prevaricação previsto no art. 319 do Código Penal (para fins didáticos, não nos imiscuiremos na análise dos crimes previstos na Lei 8.666/93), cuja pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa (na nossa hipótese, não faremos considerações sobre a possibilidade de suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei 9.099/95).

Na esfera administrativa, o TCU instaurou, nos termos do § 3º do art. 53 da Lei 8.443/1992, competente processo administrativo para apurar a violação à Lei 10.520/2002 e o órgão em que Mévio é lotado, com base no art. 143 da Lei 8.112/1990, instaurou um processo administrativo disciplinar para apurar a prática da conduta vedada pelo inciso IX do art. 117 do Estatuto dos Servidores Públicos Federais.

Desta forma, em nossa ilustração Mévio ocupa a posição de réu/defendente: (i) num processo submetido à jurisdição civil (a ação de improbidade administrativa); (ii) num processo submetido à jurisdição penal (a denúncia pela prática do crime de prevaricação); (iii) num processo administrativo de contas (onde o TCU apura a procedência da denúncia de violação à Lei do Pregão) e (iiii) num processo administrativo disciplinar que pode redundar na sua demissão.

Nestes 4 processos, só há previsão expressa de prescrição intercorrente na legislação penal, no caso o artigo 110 do Código Penal, de modo que, à luz da tese do “silêncio eloquente” do legislador, o correto seria imaginar que o jus puniendi estatal contra Mévio só seria afetado pela prescrição intercorrente no processo em que se apura a prática do crime de prevaricação, restando portanto inatingíveis por tal instituto a ação de improbidade administrativa, o processo de contas e processo administrativo disciplinar.

Contudo, tal raciocínio é equivocado.

Em primeiro lugar, no caso do processo de contas que apura a denúncia em face de Mévio, o STF já deixou patente nos julgamentos proferidos no MS 35.512/DF e no MS 32.201/DF que as regras de prescrição intercorrente previstas na Lei nº 9.873/1999 (que regula a prescrição do exercício do poder de polícia no âmbito da Administração Pública Federal) aplicam-se ao TCU.

Em segundo lugar, no caso do processo administrativo disciplinar instaurado contra Mévio, o STF possui um entendimento já tradicional, vez que remonta ao fim dos anos 90, no sentido de aplicar a prescrição intercorrente nos processos administrativos disciplinares (v.g. MS nº 22728/PR).

Ou seja, na prática, em razão do entendimento do STJ, o único processo contra Mévio que está imune aos efeitos da prescrição intercorrente é a ação de improbidade administrativa.

Ora, num cenário em que alguém responde imputações (a) na esfera penal que podem redundar na aplicação de uma pena de detenção; (b) junto ao TCU que podem resultar em multa e/ou inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública e (c) na esfera administrativa que podem acarretar na sua demissão, é flagrantemente irrazoável que todas essas graves sanções que podem decorrer do exercício do poder punitivo estatal possam ser afastadas em caso de ocorrência da prescrição intercorrente as sanções decorrentes de uma ação de improbidade administrativa não.

Qual o discrímen que torna o exercício do poder punitivo do Estado insuscetível de sofrer os efeitos da prescrição intercorrente apenas e tão somente nas ações de improbidade administrativa?

A resposta é simples: nenhum.

Sendo as ações de improbidade administrativa claramente pautadas por um caráter penaliforme e informadas pelo direito administrativo sancionador, nada justifica que elas não se submetam às regras de prescrição intercorrente que fulminam a pretensão punitiva tanto no âmbito criminal, como na seara dos Tribunais de Contas ou ainda no bojo do regime disciplinar dos servidores.

Veja, fazendo remissão a uma vetusta lição de Caio Tácito (in Fraudes Cambiais. Princípio de Razoabilidade. Prescrição Administrativa, Temas de Direito Público, vol. 2, Renovar, pág. 1943) no sentido de que “a ordem jurídica não admite a perpétua incerteza quanto à estabilidade das situações constituídas”, não se mostra aceitável, ante à flagrante irrazoabilidade e ausência de isonomia, que o ordenamento jurídico tolere a inaplicabilidade da prescrição intercorrente às ações de improbidade administrativa.

Mas, partindo-se desta acertada premissa da aplicação da prescrição intercorrente às ações de improbidade administrativa, como isso se daria na prática?

Bom, no aqui já mencionado MS 32.201/DF, o STF entendeu que a prescrição quinquenal prevista no Decreto 20.910/1932 qualifica-se como um limite geral às pretensões punitivas da Administração Pública no âmbito do direito administrativo sancionador como um todo, de modo que, na ausência de tratamento normativo específico, aplica-se o Decreto 20.910/1932 (uma norma de 88 anos que subsistiu a 5 Constituições e, que, portanto, traz consigo uma forte carga se segurança jurídica).

Neste cenário de aplicação do Decreto 20.910/1932 às ações de improbidade administrativa, uma interpretação racional adaptada à realidade do direito administrativo sancionador, leva à conclusão de que a prescrição quinquenal intercorrente incidiria: (1) no intervalo compreendido entre o ajuizamento da ação e o recebimento da petição inicial, onde teríamos uma interrupção; (2) no intervalo compreendido entre o recebimento da petição inicial e a prolação da sentença, onde teríamos uma segunda interrupção (não se falando em aplicação da regra do art. 202 do Código Civil ou do art. 8º do Decreto 20.910/1932) e (3) no intervalo compreendido entre a sentença e o trânsito em julgado.

Veja que o modelo proposto acima é baseado no prazo material previsto no Decreto 20.910/1932, mas em termos instrumentais, baseia-se na mecânica processual da prescrição delineada pela Lei 9.873/1999.

Trata-se esta tese de uma proposta que pode e deve ser objeto de debates, questionamentos e aperfeiçoamento, haja vista que em sede legislativa, nem o PL 10887/2018 da Câmara dos Deputados e nem o PL 3359/2019 do Senado tratam de uma forma clara e expressa o instituto da prescrição intercorrente nas ações de improbidade administrativa.

Uma coisa é certa: adotando-se ou não o modelo aqui proposto, é preciso que o Judiciário desde já aplicar algum parâmetro para aplicar a prescrição intercorrente às ações de improbidade administrativa e assim promover o overruling do insustentável atual entendimento do STJ acerca do tema.

 

Por Aldem Johnston. E-mail: admecon@mellopimentel.com.br